Prefácio
Neste artigo eu firo uma regra muito importante do jornalismo; o início do texto não é a coisa mais importante, e o assunto principal começa depois de dezessete (sim) parágrafos. Porém, acredito que o resultado é satisfatório e que essa introdução colabora com meu ponto.
E tem outra: isso aqui não é um jornal e, mesmo crendo que o jornalismo nunca sai da gente, eu não to aqui escrevendo notícia.
Introdução
Um tempo antes de terminar com Renata (minha psicóloga), a gente teve uma sessão daquelas inesquecíveis. Depois de uma hora discutindo, chegamos à conclusão que eu estava mais consciente dos meus sentimentos. Estava conseguindo identificar os dias de tristeza, os gatilhos da minha ansiedade, e como evitá-los.
Com esse conhecimento comecei a mudar alguns comportamentos. Nos dias ansiosos, passo longe da cafeína e me jogo em atividades que precisam de agilidade e rapidez — afinal, estou ligado no 220. Nos dias tristes, foco em atividades solitárias — já que normalmente fico pessimista e grosseiro — e evito comer compulsivamente me afastando de snacks e similares.
Essa experiência fez minha psiquiatra iniciar um processo de desmame do remédio — ou seja, em alguns meses estarei, pela primeira vez em muito anos, sem minha medicação diária.
Esse texto não tem nada a ver com tristeza, ansiedade ou fármacos. Ele é sobre autopercepção — e como a gente descobre coisas interessantes com uma coisa idiota como prestar atenção em si próprio.
Inimigo do espelho
Escovo os dentes e lavo o rosto no chuveiro, aprendi a passar cremes no rosto sem confirmar se eles estão bem distribuídos e visto roupas parecidas todos os dias. Quase nunca paro em frente a um espelho e olho para meu rosto.
Talvez seja Zoom Fatigue. Escondo meu rosto do jeito que for possível na telinha do meu computador logo que entro em minha primeira reunião online. Coloco um papel na frente, uma garrafa, não importa. Olhar para meu rosto enquanto falo me distrai.
Quando comecei a perceber ativamente meus sentimentos, fiz uma experiência. Respirei fundo e me coloquei, nu, na frente do meu espelho de corpo todo, e anotei meus sentimentos conforme eles foram vindo, sem restrições. Não foi legal. Fiz o mesmo depois, com roupas do dia-a-dia, e então me vesti “bem” e repeti o processo.
Foi interessante perceber como meus sentimentos mudam radicalmente dependendo de uma ou outra peça de roupa. Ao me ver usando acessórios — o que nunca faço — me senti descolado e interessante. Voltei a usar anéis e comprei uma correntinha com pingente (uma carta de tarot).
Anotei, claro, como sinto repulsa e ódio quando me vejo sem roupas em frente ao espelho, e percebi como isso pode contribuir pra um feedback loop de baixa autoestima. Joguei as anotações fora.
All work and no play
Nessa jornada de autoobservação percebi como os jogos que escolho para minhas noites de relaxamento são cópias do meu trabalho — ou emulações do tipo de trabalho que gostaria de ter. Meu gênero favorito é base building game — em resumo, você deve ser o gestor de um ajuntamento e fazê-lo prosperar, enfrentando adversidades e obstáculos.
Dois nomes me vem à mente quando falo nesse tema: Oxygen Not Included e RimWorld (375h e 371h jogadas, respectivamente, segundo minha conta no Steam).
Nos dois games você tem que cuidar de suas pessoinhas, direcionando-as a tarefas que vão melhorar suas vidas — seja cultivar novos vegetais, fabricar armas improvisadas ou transformar couro humano em chapéus. As pessoinhas tem os próprios sentimentos e vontades, e só farão as tarefas se estiverem de bom humor, de barriga cheia e suficientemente descansadas. Por mais óbvio que pareça, se você não estiver lá pra ajudá-las, elas se perdem completamente e colaboram para a própria autodestruição.
Trabalho com desenvolvimento frontend, porém cada vez mais caminho para uma posição de gestão, o que implica em cuidar de meus colegas, direcionando-os a tarefas que vão melhorar suas vidas — seja refatorar aquele código feio, instalar novas ferramentas sofisticadas ou alinhar objetivos e indicadores. Os colaboradores tem os próprios sentimentos e vontades, e só farão as tarefas se estiverem de bom humor, de barriga cheia e suficientemente descansados.
Percebe?
Por mais óbvio que pareça, se você não estiver lá pra ajudá-los, eles se perdem completamente e colaboram para a própria autodestruição.
Eu trabalho o dia todo, chego em casa, ligo meu videogame, e trabalho mais.
(Joguem RimWorld, é sensacional. Jogue ONI, mas cuidado que vicia)
A busca incessante pelo Mentor
Esse texto começou com o título acima e virou essa monstruosidade.
Queria falar um pouco sobre como tenho percebido esse meu tendão de Aquiles. Em todos os meus empregos, sempre vi meus chefes usando meus olhos pidões, imaginando-os como os Obi Wans do meu Angelo Skywalker. Sei (hoje) que isso vem muito da falta de entusiasmo de meu pai de estar nessa posição — obrigado Renata, a psicóloga — mas nunca tinha percebido com cautela como isso se desenvolve. Observei, anotei, e fiquei boquiaberto com a noção plena de que sou um baita trouxa.
Antes de continuar, um aviso: tudo isso que descrevo aqui aconteceu de forma subconsciente e natural. Eu só percebi esses detalhes agora, então se você está lendo isso e descobrir que eu te tratei como O Mentor, tá tudo bem, eu bem provavelmente não trato mais.
O primeiro Mentor
Pelo que me lembre, tudo começou com meu pai o Editor de Arte da Folha de S. Paulo, cujo nome omito de propósito, quando saí do trainee e fui contratado. Tudo o que ele falava eu ouvia como lei, sabendo que Ele passava O Conhecimento para mim, um pequeno aprendiz. Com o tempo, saquei que ele (e meu pai também) não era nada mais que um… cara. Claro, um profissional que fez muito para estar ali, porém cheio de erros e questões.
Sabe quem não era assim? Sua sucessora.
A segunda Mentora
Assim que ele foi substituído por Ela, a nova Editora de Arte da Folha, eu me apeguei fortão.
Ela sim Nunca Havia Errado, era A Criatividade Em Pessoa, com seu sorriso que iluminava meu caminho. Em poucas semanas eu já estava ali chupando as bolas dela até engasgar, imaginado que agora sim eu iria conseguir O Mentor — e, melhor ainda, A Mentora, uma mulher de sucesso!
Não demorou para que eu aprendesse que ela também tinha suas questões — muito menos que o ex-chefe, graças aos deuses. Descobri que a gente estava muito mais em paralelo do que acima/abaixo, e que tinhamos muito o que trocar. Felizmente, ao invés dessa dinâmica mestre/aprendiz, cultivamos uma amizade interessante que se manteve até depois da minha demissão.
O terceiro Mentor
Após dois péssimos anos de desemprego, encontrei O Novo Provável Mentor. Ele, carismático e falante, me convidou para um projeto só com gente foda — ele incluso! — e logo me vi sorrindo como um bobo apaixonado pensando em nós dois sob uma árvore, ele com seu livro aberto e eu sentado aos seus pés, ouvindo com cuidado todas as maravilhas que ele me ensinaria.
Fico feliz que a fase “Cabral, O Mentor” passou. Porém, em um próximo emprego, me vi completamente deslumbrado pelo novo chefe. Ele, O Empreendedor De Sucesso, Conhecedor Das Pessoas, Estabelecedor De Processos, Caçador De Talentos.
Eu, o absoluto trouxa.
Custei muito para jogar esse ideal fora, para conseguir ver essa pessoa de outro modo, não como O Mentor, mas como… um cara. No fim, nos tornamos amigos (será que esse é o padrão?) e mantemos contato hoje — reclamando bastante da vida e compartilhando boas novas.
O quarto Mentor
No fim das contas, arrumei um emprego na Alemanha e, adivinhem?
Sim, idealizei OUTRA pessoa.
O mais chato desse comportamento é que eu sabia no que estava me metendo. Eu já havia identificado que eu estava a idealizando — afinal, dessa vez eu estava observando meus comportamentos de perto — e mesmo assim aceitei acordos que normalmente negaria, falei demais em conversas privadas, me mostrei vulnerável cedo demais.
A observação de meus próprios comportamentos não foi o bastante para me blindar de cair na armadilha que eu mesmo criei. Agora, 1 ano e meio após meu ingresso nesse país, já me decepcionei o bastante com ele (na verdade, com a versão idealizada que tinha dele) e ele voltou ao posto de “humano comum”.
E eu com isso?
A parte que me intriga — mentira, tudo nesse processo me intriga — é que eu não consigo me ver como vejo essas pessoas. Não importa por quantas experiências passe, não acho que sou O Mentor de ninguém (e nem serei). Ao olhar para mim, não consigo ver o que vejo nos outros.
A visão que tenho de mim mesmo é um abismo em relação à visão que tenho dos outros.
Mesmo conhecendo e tentando seguir à risca a máxima “The Gap”, de Ira Glass, não consigo me ver como alguém que tá do outro lado do abismo, com o “taste” em harmonia com a criação.
Estou me consultando com uma nova psicóloga, Jordana. Sua abordagem é diferente da Renata — e ainda não sei muito bem se vamos “dar certo” ou não, estou no processo de descobrimento. Ela me passou algumas lições de casa que foram divertidas (e aterrorizantes). Em uma delas, precisei escrever um “autoconceito”, um documento em que narraria como eu me via no mundo.
Nem ela nem eu sabíamos que eu apareceria com um documento de doze (!!!) páginas.
Cinco mil e quatrocentas palavras1 de Angelo descrevendo suas tatuagens, suas questões com o corpo, como ele sempre quis usar ternos, que ele quer voltar a escrever ficção, e que ele quer uma namorada. Quase 31 mil caracteres de Angelo se olhando no espelho, fisicamente e psicologicamente.
E, por mais dolorido que tenha sido, saí feliz com meu autoconceito. Acho que hoje estou em um lugar muito mais consciente que há um ou dois anos.
Estou animado com esses exercícios — tem outro que ela passou que não posso compartilhar ainda — e quero muito fazer mais deles, afinal, também são ótimos exercícios de escrita.
Conclusão
A questão desse textão convoluto é perguntar: você se olha no espelho?
Me questiono quantas vezes a gente olha pra outras pessoas com uma admiração sobrenatural e não consegue ver coisas semelhantes na gente mesmo. Quantas vezes a gente endeusa gente que é, bem, normal, sem nada de excepcional? Quantas vezes a gente coloca nossas características endeusáveis como normais, sem nada de excepcional?
Será que você já colocou no papel se os filmes, jogos, ou livros que você consome tem a ver com a sua vida? Pode parecer que não, mas se você teve uma vida complicada na escola e encontrou alívio lendo Harry Potter, pode ser talvez que você esteja preso em um loop de leituras “queria que minha adolescência tivesse sido assim”.
Em tempo: combater fucking dementadores parece mais interessante que reviver meu tempo escolar.
Nada contra Harry Potter Opa, mentira, tudo contra Harry Potter, tem mais coisa aí no mundo para ler que não dê dinheiro e atenção pra transfóbica. O ponto é: as vezes você tá preso nesse loop e sabe (igualzinho eu e meus jogos de management), mas talvez seja uma coisa nova… exatamente porque você nunca se olhou.
O que acha de fazer esse exercício e escrever sobre como você se vê? Como é seu físico, sua mente, seus interesses, seus planos, e o que mais der na telha?
Pare um pouco — sim, você consegue, por mais difícil que seja fazer isso hoje em dia — e escreva duas (ou doze) páginas sobre si mesmo. E vamos descobrindo, juntos, como transformar o espelho em um amigo — e você mesmo em seu Mentor.
Como referência, esse texto tem ± 2 mil palavras e ± 11 mil caracteres
Seu texto me fez lembrar da nossa primeira interação na folha. Era de manhã, acho que eu tava fazendo turismo e comida na época, vc chegou freneticamente e cheio de energia na minha mesa pra tirar umas duvidas. Eu com toda minha apatia e mau humor provavelmente respondi seca e diretamente. Não pareceu te abalar nem um pouco. Desde aquele dia vc deixou uma marca que sempre esteve presente. Sua curiosidade e coragem de colocar as coisas pra fora e seu amor por tentar entender e interagir com os seres que estão à sua volta. Vc não tem medo nem vergonha de pedir ajuda. Vc é sim, admirável e tenho certeza que seria um puta gestor, pois vc conhece os comportamentos humanos e tem uma empatia enorme.
Obrigado pela reflexão sobre espelhos e mentores. Lembrei de uma vez em que fui à praia com um então ainda mentor idealizado. Em certo momento, olhei pra ele ali de bermuda tomando um sol ao meu lado e me caiu a ficha que, apesar de toda admiração que nutria por ele, ele era ainda apenas um outro ser humano como eu. Continuo idealizando outras pessoas? Claro haha, mas né, a gente vai aos poucos 😅