Marcar o tempo
Dez anos de cartas para o futuro — um projeto sobre tempo, memória, e mudança.
Nesta edição do Cronofobia:
Marcar o tempos
Positiv o ano todo
Marcar o tempo
Há dez anos — caraio men, to ficando velho — comecei um projeto pessoal bobo e inofensivo. No fim de 2014, escrevi um email para o Angelo de 2015 com expectativas, sonhos, e pensamentos. Nele percebi que planos de longo prazo são só ideias abstratas, que certezas não são rígidas, e que o pra sempre SEMPRE acaba.
Há sete anos (não lembro mesmo) comecei um projeto pessoal bobo e inofensivo. Comprei um calendário e, ao invés de escrever as coisas que iriam acontecer no futuro (como uma ferramenta de planejamento), o utilizei pra escrever o que aconteceu, quem vi, o que fiz (como uma ferramenta de memória). O calendário me ajudou como um medidor de depressão — muitos dias vazios seguidos — e de quanta gente eu tenho ao meu redor — me salvando de muita crise de solidão.
Há ?? anos (esqueci mesmo) comecei um projeto pessoal bobo e inofensivo. Escrevi um obituário falso, de um minerador de asteróides, e precisei de um lugar para publicá-lo. Acabei inventando um jornal satírico de ficção científica que, em 28 edições, teve a participação de mais de 30 escritores e ilustradores. Publiquei a compilação (e mais material extra) pela Plutão Livros. Compra lá, é baratinho e, modéstia a parte, bem divertido.
O tempo sempre foi um tema — não à toa “cronofobia” — e esses projetos me ajudam a entendê-lo. Já escrevi sobre isso aqui outras vezes:
Quero mostrar para você, pessoa leitora, como esses projetos têm sido bons para acalmar ansiedades e, principalmente, para mostrar que a vida muda — rápido — e a gente nem percebe.
O calendário
Já falei dele aqui (e em outros lugares) antes. Não vou me repetir. Escrevi — ou melhor, desenhei — sobre ele na edição DEZOITO da zine Tefopress:
Eu até gravei um TikTok (dos poucos vídeos que fiz lá) sobre isso:
O email do futuro
Recebi, no dia 13, o email de 2023 para 2024 e, bem, pela primeira vez na minha vida as coisas não mudaram drasticamente. Eu não posso nem fudeno falar em detalhes sobre o que eu escrevi nessas edições — meus advogados me impediram—, mas posso mostrar para vocês como as coisas mudam — e como esse tipo de exercício é importante.
Em tempo: utilizei a plataforma FutureMe, que faz isso de graça para qualquer um. Uma das primeiras coisas que fiz quando ganhei em Euro, na Alemanha, foi mandar dinheiro para eles. Vale a pena.
A vida é louca. Em 2014, escrevi o seguinte para o Angelo do futuro:
Hoje você trabalha na Folha de S.Paulo. Está aqui há quase seis meses […] Você odeia ser um diagramador. É um trabalho sem vergonha, que puxa toda a sua energia e esfrega na sua cara: você não é bom o bastante para isso. Aliás, de quem foi a ideia de jerico de trabalhar com design, rapaz? No máximo você era bom durante o jornalismo. Agora, no meio de designers, vc é um bosta e sabe disso. Ou pelo menos acha isso.
Um ano depois, escrevi:
Você ama ser um profissional da Folha.
Que loucura né? Ainda mais se pensarmos que em 2014 eu era diagramador — tinha acabado de passar no processo do trainee, fiz dois contratos temporários, e fui efetivado. Curioso que, em 2015, mesmo eu amando trabalhar lá, eu ainda achava que tinha algo errado.
Você ainda não curte muito (não é um ódio) ser um diagramador e gostaria de estar full-time na infografia (ou no online)
Um ano depois…
Você gosta ainda mais de ser um profissional da Folha. Edge? Muse? Sai fora, cara! Agora é roots, html, css e javascript.
Quantas pessoas conseguem apontar com clareza quando a mudança de carreira delas começou — ainda mais quando não há um curso regular envolvido? Eu consigo.
Na carta de 2018:
Você ainda está na Folha. Cinco anos, hein. Ainda programador, hoje se sentindo muito valorizado.
Já, em 2019…
Você foi demitido.
GOSTOSAS RISADAS.
Em 2015:
bem, você está CASADO. Isso é uma surpresa, né?
Em 2016:
[…] está bem casado e muito feliz.
Em 2017:
Se há um ano você estava casado e feliz, hoje você está separado e feliz. Ninguém imaginava que o divórcio chegaria, mas ele chegou, e você está lidando com isso de um jeito interessante.
A vida muda… e muda rápido.
Poucos anos foram tão caralho que desgraça como 2017.
É, nesse ano o pai morreu. Foi e está sendo uma barra FORTE para se segurar.
Engraçado como a gente sempre pensa “ano passado foi horrível” sem ter muita noção se realmente foi uma merda. 2017 está, sem sombra de dúvidas, na lista dos piores anos da minha vida.
O Tempos Fantásticos […] já está dando nos nervos. […] Você já está louco para desistir dele.
Foi nessa edição que comecei a colocar algumas expectativas — planos, ideias, vontades — para o ano seguinte. Isso acabou formando mais estrutura para as cartas, afinal, eu saberia exatamente as perguntas que deveria responder no ano seguinte.
No fim de 2017 coloquei as seguintes expectativas para 2018:
- feliz com seu apê alugado, mobiliado e bonitinho
- produzindo arte e literatura
- fazendo HQs de algum jeito
- com o Tempos Fantásticos de volta de um jeito bom (mais páginas, menos stress)
- ganhando melhor, trabalhando melhor, talvez com gestão ou não.
- rodeado de amigos
- transando bastante com qualidade
Não transei mais, perdi amigos, continuei no mesmo emprego, não fiz HQs, parei de produzir arte, e não comprei um mísero quadro pro apê.
A única que se realizou foi o Tempos Fantásticos. Já disse que publiquei um livro do Tempos Fantásticos????
Dois anos depois, em 2019, foi quando pensei em produzir o livro… só demorou CINCO ANOS. Compra lá, na moral.
O TF quase acabou. Agora vocês estão no processo de fazer um livro com todas as edições — pra ver o que rola.
Na quinta carta (2018 para 2019) resolvi melhorar a estrutura dos emails (que eram só textões sem pé nem cabeça). Inventei tópicos.
Bora profissionalizar essa porra:
TRABALHO, ROMANCE, AMIGOS, FAMÍLIA, CASA, MUNDO, PROJETOS, DINHEIRO, SAÚDE, MÚSICA.
Fiz isso pois percebi que as coisas estavam meio misturadas — parágrafos sobre trabalho misturados com dates misturados com tristeza.
Isso fez bem — informação estruturada is my thing — mas ao mesmo tempo fez com que todas as seções ficassem gigantescas. Dê qualquer espaço para um jornalista que ele IRÁ preenchê-lo.
Outra coisa que registrei foi minha mudança de lares.
2015 e 2016: Alameda Glete, na Santa Cecília, São Paulo, com minha então esposa.
2017: quatro lugares diferentes (divórcio é foda). Um deles foi o Copan, olha que chique, mas por 30 dias apenas.
2018: Rua Apa, perto do metrô Marechal Deodoro, ainda no centro de SP.
2019: Avenida São João, em frente à praça Marechal Deodoro.
2020: Rua Azevedo Marques, no mesmo bairro; uma kitnet de 28m2 que vai deixar saudades pelos prós e pelos contras.
2021: Avenida São João de novo, porém lá pra cima, perto do metrô Santa Cecília.
2022: Dois endereços em Munique, na Alemanha.
2023: Mogi das Cruzes, com meus três irmãos.
Santa Ceciler, eu?
O assunto romance sempre é engraçado. Em um ano, disse:
você descobriu sua personalidade não-monogâmica e está com pessoas maravilhosas, como a [CENSURADO].
Um ano se passa e…
Você ainda está solteiro. O relacionamento com a [CENSURADO] se mostrou uma explosão de problemas e questões.
Também lidei com sexo e sexualidade — com coisas boas e, bem, coisas horríveis.
Ano que vem você vai passar o carnaval na casa da [CENSURADO 2] e eu espero que — no mínimo — vocês transem muito.
No ano seguinte…
Por mais que eu queira que essa memória se vá, não importa, ela vai ficar pra sempre ali em algum canto da sua mente. Por mais que eu queira dizer que foi algo leve, algo tranquilo... não foi, você sabe. Nenhum abuso é leve e tranquilo.
Falei sobre isso aqui:
Acompanhei de perto minha depressão e ansiedade. Em quase todas as edições falo sobre a tristeza extrema que me acomete de vez em quando. As cartas me deixam sorridente pois, mesmo com momentos de fundo do poço, continuo aqui. Segue canção motivadora:
Acho curioso que escrevi muito mais sobre remédios psiquiátricos do que sobre psicotrópicos. A única menção à drogas é essa, de 2019.
Faz tempo que você não usa outras drogas pq elas tem te fodido bastante. […] Você queria muito tomar 1 litro de MD mas sabe as consequências.
Engraçado como os sentimentos são cíclicos. Em 2018, um tempo pós divórcio:
Hoje você […] transa mais do que você imaginou na vida.
Em 2022, já via os sintomas:
Foi foda passar quase 8 meses sem sexo na Alemanha.
Te falta amor, eu acho. Carinho na bunda. Cafuné. Abraço.
Já, na carta de 2023 para 2024:
Acho que o maior impacto no quesito "romance" foi ter voltado ao Brasil e tomado uma bota da [CENSURADO 3]. Você realmente achou que teria afeto romântico ali e… não tem. Tudo bem — digo, por fora. Por dentro não. A vida segue.
Você está… desiludido. Com essa nova situação familiar, não consegue imaginar que mulher nenhuma vai querer se relacionar com você — e, convenhamos, nem que você vai querer se relacionar com alguém. Claro que existem as pessoas do "casual com afeto", como [CENSURADO 4], mas elas estão em outro lugar nesse esquema.
Eu continuo querendo uma namorada, um afeto mais fixo, mas duvido que isso vai acontecer. Como eu disse ano passado: te falta amor, eu acho. Carinho na bunda. Cafuné. Abraço.
Já sei que na carta de 2025 vou escrever sobre ainda querer uma namoradinha, um carinho na bunda, cafuné e abraço. Me falta amor. Me sobra ódio.
As expectativas de romance/sexualidade de 2023 para 2024 foram… bem, frustrada pra caralho:
Expectativas:
- ?? Sei lá bicho
- Estar com alguma pessoa parceira ponta firme??
- Sei lá mesmo, to desiludido, bem pessimista.
Continuar ou não?
A grande questão que surge no fim da última carta é:
Novamente, a sensação de "será que devo continuar com isso?" surge e, mesmo assim, você aperta o botão e lá vamos nós para o ano seguinte.
Sim, vou continuar. Quero que dê pra eu fazer um panorama ainda maior da vida, e continuar entendendo que as coisas mudam drasticamente. Espero que esse exemplo real de como a vida é completamente maluca tenha te inspirado a vê-la com menos urgência e sacar como as coisas não permanecem iguais por muito tempo.
Para saciar a curiosidades dos numerofílicos: até a última carta (sem contar a de 2024 para 2025 que eu ainda não escrevi), o documento tem:
47 páginas
10.276 palavras
56.867 caracteres
57m28s se lido em voz alta
44m11s se lido silenciosamente
Rapidinha
A única que merece é, claramente, uma decisão que com certeza vai fazer alguns dos meus cabelos caírem.
Positiv o ano todo
Se você não sabe, além de ser programador, escritor, designer, podcaster, e pai postiço, sou um organizador de surubas. Sim, sou um sem-vergonha profissional. A Positiv, a empresa de festas para adultos que fundei com minha sócia Julia, oferece eventos de gente pelada com foco em segurança e consentimento — preenchendo um gap de espaços body- e sex-positive para pessoas LGBTQIA+ e não-monogâmicas.
Até 2024, fazíamos eventos bimestrais mas, com uma reformulação de estratégia, agora teremos (quase) uma Positiv por mês durante 2025. Sim, é festa pra caralho.
Para saber mais você pode acessar nosso site e/ou seguir nosso Instagram. Clique abaixo pra saber todas as datas.
Se você já teve, algum dia, curiosidade de como deve ser um evento do tipo — com gente pelada e possibilidades sexuais, mas com a regra zero de “ninguém é obrigado a nada”, talvez essa seja a sua oportunidade.
Por enquanto é isso, e até a próxima.
Lembro de a gente ter conversado sobre esse rolê de se mandar e-mails para o futuro. Isso foi até pauta em uma sessão de terapia posteriormente.
Gosto muito como você pensa, e gosto ainda mais de conhecer você melhor. Espero te ver mais em 2025. ❤️
Que massa essa ideia do calendário da memória. Curti e vou copiar na cara dura hahaha Aqui a gente anotava as coisas boas que aconteciam durante o ano, colocava num pote e abria todos os bilhetes no Natal, uma forma de reviver o ano também. Daí a gente pegava todos os papéizinhos e jogava fora 🙈
A V. tem um e-mail onde a envio memórias dos dias que passamos (daqui a pouco o Gmail vai achar que sou mãe spam) e caderninhos onde também anoto as coisas banais — mas gosto de pensar que será uma forma de lembrarmos de como ela foi crescendo com a gente e a gente com ela.