“E essa tatuagem, tem significado?”
Tem.
Pronto, respondi de uma vez por todas a pergunta que me fizeram mil vezes durante a vida. Sim, todas as minhas tatuagens tem algum significado — nem sempre o que esperam, mas tem.
Quando comecei a me tatuar, circa 2010, li alguns artigos sobre a história da tatuagem e o que alguns símbolos significavam. Descobri, através desse estudo, que muitos marinheiros marcavam sua pele em diferentes partes de suas jornadas, as vezes com sinais literais — um barco naufragando para sobreviventes de naufrágio — porém a maioria dos desenhos eram marcas de momentos diferentes de suas vidas — uma âncora que simboliza um momento de estabilidade, um um farol para aqueles que buscam um sentido naquilo tudo.
Minha escola de pensamento de tatuagem é exatamente essa. A grande maioria das minhas tatuagens tem significado, mas o principal delas é a marcação no tempo que elas foram feitas.
Através das belíssimas fotos do fotojornalista Giovanni Bello, falarei sobre cada uma das minhas quase 40 tatuagens abaixo. Espero que vocês gostem dessa jornada à uma parte bem específica da minha intimidade.
Aliás, as fotos não estão em ordem cronológica, exceto pelas duas primeiras, e escolha de fazer as fotos em preto-e-branco foi minha. As cores não importam tanto, e sim a simbologia.
Três rosas
Minha primeira tatuagem é um desenho de três rosas: amarela, vermelha, e preta.
A ideia original era tatuar uma orquídea, flor favorita de minha mãe — falecida em 2007. Uns dias antes da tatuagem sonhei que meu pai chegava em casa com um buquê de rosas e a presenteava. Acordei, perguntei ao meu pai a flor favorita de minha mãe e escutei o arrepiante “orquídeas, todo mundo sabe, mas uma vez dei rosas amarelas pra ela e ela adorou”. Estava tomada a decisão.
Além da rosa amarela, há uma vermelha, que simboliza minha avó Wilma, decendente de espanhóis — portanto, rosa vermelha, uma coisa meio flamenco. Em um misto de vergonha e orgulho, explico a rosa preta. Passei boa parte da minha infância com uma empregada doméstica chamada Gentila. Ela, uma mulher preta, morreu antes que eu chegasse à adolescência. Sei o quão problemático é eu ter escolhido a rosa preta para uma pessoa preta, mas prefiro não omitir como mudei de pensamento do que inventar uma outra razão para a tatuagem. É em honra a Gentila sim, e vai continuar sendo.
Três relógios e duas frases
Não é de ontem que brigo contra o tempo — o nickname Cronofóbico não é recente. Tatuei três relógios em meu peito:
Um despertador, com o horário de meu nascimento
Uma ampulheta, com o tempo passando e a frase “o tempo é subestimado”
Um relógio quebrado com as iniciais JJL — Jaime, meu pai, falecido; José, meu avô, falecido; Lucas, meu irmão, felizmente ainda vivo.
Simbolizando o início, meio, e fim, os relógios simbolizam minha relação com o tempo que passa e vai deixando as coisas para trás, e como não ligamos muito para o que temos de mais valoroso. Curioso que, no relógio quebrado, anotei quem poderia estar comigo até o fim. Meu pai morreu em um acidente automotivo; meu avô morreu depois de anos sem falar comigo por conta de brigas de família; sobra meu irmão, quem eu desejo nunca ver morrer.
Quem me conhece pode dizer: “mas e seus irmãos menores?” Calma, a hora deles vai chegar.
A frase “As Above, So Below” foi tatuada muitos anos depois, tosca de propósito — pedi para a tatuadora não desenhar nada antes, só escrever a frase diretamente na pele com a agulha, sem planejamento ou decalque. É a segunda frase da Tábua de Esmeralda: “Tudo o que está em cima é como o que está embaixo”, e vem de um fascínio pelo desconhecido e mítico — e por conta desse disco do Jorge Ben Jor:
O animal espiritual
Sonhei, em uma ilusão onírica quase batmanesca, que estava em uma caverna, dependurado de ponta-cabeças, com vários morcegos. Eles me alimentavam com frutas e conversavam comigo com ruídos agudos. Quando eu me soltava para voar, caía eternamente, já que não tinha asas.
Pesquisei sobre morcegos e sonhos e me deparei com a ideia de que eles veem o mundo sob outra perspectiva. Sendo um animal que simboliza intuição e a vida não-tradicional — veem com sons e são ratos com asas — percebi o quão “morcego” eu estava sendo nos últimos anos — e quão parecido ele é da carta d“O Enforcado”, no tarot. Resolvi eternizá-lo.
Anos depois, ao conversar com pessoas sobre mitologias e esoterismos, descobri que o morcego é um animal espiritual que acompanha quem tem grandes poderes de percepção, e quem tem uma vida fora do convencional, visto as vezes como o portador de pragas ou ameaçador, mas que na verdade auxilia o ecossistema exatamente por seu jeito diferente de ser.
As adagas
Duas facas para duas canelas; Ao mesmo tempo referenciando uma traição, a famosa “facada nas costas”, elas simbolizam a ruptura com o que acontece agora e a versatilidade de se ter armas onde ninguém espera. Hoje, anos depois, posso ver um 2 de Espadas do Tarot, mas esse não foi o significado original.
O satélite
Até hoje não descobri se esse satélite foi uma criação do meu tatuador ou se ele é a representação de algo que já existiu. A ideia em tatuá-lo foi simples: queria algo espacial, uma conexão com meu fascínio pela ficção científica.
Lembro de ter escolhido essa tatuagem ao invés de uma vinheta do busto de Asimov. Agradeço ao universo por ter decidido pelo satélite e não pelo velho, de quem era fã e que hoje considero só mais um homem branco escroto da literatura.
A costela-de-adão
Esse é meu trabalho favorito da Jana, minha amiga e tatuadora, e minha tatuagem favorita. Ela não tem nenhum significado exceto “achei bonito e tinha dinheiro”. Talvez o significado seja esse mesmo: gastar consigo próprio, sem uma função prática ou um sentido profundo, pode resultar em acontecimentos maravilhosos.
Além disso, essa marca no corpo é também um símbolo da minha amizade com Jana, como estávamos a mil por hora em uma vida muito doida, cada um com suas diferenças, e como estivemos lado a lado por tanto tempo. Boas lembranças.
O copo-de-leite
Mais um na lista dos “fiz porque achei bonito”. Sempre quis ter uma tatuagem da Vanessa Lara e realizei meu sonho pouco antes de vir para a Alemanha. Ela é feita em vermelho, e é uma das minhas poucas tatuagens coloridas depois que decidi seguir fazendo só blackwork.
A samambaia
Essa tatuagem poderia muito bem estar na lista do “fiz porque gostei”, mas não está. Lembro exatamente do momento que a fiz — da risada solta da Jana, do estúdio chique da Noele, do meu divórcio em andamento, da minha relação complicada com meu emprego. Há quem brinque que eu fiz essa samambaia porque ela, na verdade, é uma folha simbolizando a “Folha”, ou que eu a fiz por estar morando na Santa Cecília.
Acho que é a primeira vez que confesso isso em “voz alta”. Essa tatuagem foi e sempre será uma lembrança afetuosa do meu tempo com a Daia, minha ex-mulher. Seu cuidado com plantas sempre foi algo que eu admirei e quis, em segredo, eternizar essa conexão em minha pele. Dizem que o amor nunca acaba, apenas muda.
Fim da parte 1
Essa edição iria ficar muito grande para a caixa de entrada de quem recebe a newsletter, então decidi separá-la em partes. Há muito (22 fotos, e algumas tem duas ou mais tatuagens) para ser contado, mas não te entediarei mais no momento.
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gostei muito dessa tour e eu adoro essa relação símbolo e significado particular pra cada um
e diz tanto sobre nós, acho incrível
aguardo a parte dois!
amei!! curiosa pela parte dois ♥️