Nesta edição do Cronofobia:
O tema principal
Um agradecimento
Dinotopia
Cyberpunk
Mad Ship
Tempo de leitura: ±10 minutos
Essa edição ficou GRANDONA e deu MUITO TRABALHO, então provavelmente seu cliente de email não vai exibir o texto todo. Ao invés de pensar “nem vou ler!”, valorize a energia que o amiguinho aqui investiu e clique no título do texto.
Ao clicar, o texto integral será aberto em uma outra janela, para o deleite das pessoas leitoras.
O tema principal
Tá, todo mundo sabe que o nazismo É SIM o vilão, afinal, isso foi empurrado goela abaixo durante toda a nossa vida — imaginando que nenhuma das pessoas leitoras seja alguém que foi adulta em 1945.
Desde que o bigodinho estourou os miolos, a indústria cultural ficou de perna bamba de tanto usar o nazismo como vilão default em tudo o que é mídia. Teve livro, série, filme, videogame, quadrinhos, até board game. E eles estavam corretos, afinal, nunca mais ninguém queria ver esse bando de maluco no poder novamente.
Na minha breve passagem pela Alemanha, aprendi que os alemães são atoxados desde criancinha sobre a vergonhosa história do país. Uma colega, judia, disse que, no equivalente à 5ª série do Brasil, era obrigada a ver vídeos e vídeos de campos de concentração e a violência cometida pelo Reich — afinal, todo mundo tem que saber o que a Alemanha fez.
Ao visitar o campo de trabalho forçado e extermínio Dachau, perto de Munique, me emocionei com as descrições gráficas do que acontecia por ali, e não consegui fotografar mais do que o prédio principal. A visita às câmaras de gás é brutal. Ali também deu para aprender muito sobre como era a relação dos nazistas com seus colaboradores.
Digo, então, que o título desse artigo é sim um grande clickbait — os nazistas são vilões pra caralho. Mas, ao mesmo tempo, são hoje uma baita cortina de fumaça que esconde os reais vilões da contemporaneidade.
O nazismo venceu
A guerra de secessão dos Estados Unidos da América acabou em 1865, há 160 anos, e ainda hoje vemos símbolos de apoio do lado perdedor — e escravagista — sendo utilizadas por inúmeras pessoas que apoiam um imaginário de orgulho e tradição — máscaras para racismo e violência. A bandeira dos confederados ainda é exibida — com orgulho — por muitos norteamericanos.
Empunhar a bandeira nazista é literalmente crime em muitos países, inclusive no Brasil (Lei 7.716/1989), e se a gente vê qualquer um com uma estética parecida com os caras a gente pensa: osh, que porra é essa?
Um parêntese
Quando o baixista do Interpol (minha banda favorita) Carlos Dengler saiu do grupo, uma das suposições é que ele era nazista. Essa ideia vem exclusivamente do jeito que ele se vestia nos shows.
Ele nunca se pronunciou nem fez apologia ao nazismo, e só pela sua estética todo mundo já sacava: é claro que esse maluco com um ARMBAND VERMELHO E CAMISA PRETA é um nazistinha de merda. Mas não, nunca houve uma palavra dele confirmando isso (nem negando, mas esse é outro tópico).
Fechando parenteses, o importante aqui é que a estética se mantém. E, diferente da secessão americana, não foram os completos alucinados e burros e idiotas que propagaram os símbolos deles; foi a própria indústria cultural.
Ou você vai dizer que nunca viu pelo menos doze filmes com nazistas?
Todo mundo sabe quem é o herói
Há franquias que usam e abusam do Reich como vilão — Indiana Jones — e até filmes de comédia que satirizam o próprio Hitler — Jojo Rabbit. Há inúmeros filmes de drama com o nazismo como pano de fundo ou personagem, e filmes de ação com muito tiro e explosão.
Em uma breve troca com a designer Paula Cruz no Twitter, ela citou o seguinte:
Amigo, já fez o curso da Ethel Leon de história do design? Ela fala como moralmente o nazismo ganhou a guerra, pois seus valores de família, mulher e masculinidade foram exportados pros EUA!
No fim, o nazismo perdeu a guerra bélica mas ganhou a guerra cultural — afinal, a gente reconhece uma suástica de longe. E, sem pestanejar, a gente diz que os reais vencedores da guerra são, claro, os EUA.
Mas porra, não é bem assim que a história aconteceu! Os EUA podem ter ajudado a vencer a guerra, mas não estavam sozinhos nessa.
Mas tasca lá Inglorious Basterds com o capitão norteamericano, joga na nossa cara os 23 minutos frenéticos de O Resgate do Soldado Ryan, ou enfia romance com Casablanca.
Claro, tem um montão de filme de guerra que mostram ingleses e soviéticos, mas há de se lembrar que filmes militares, em sua maioria, funcionam como propaganda — sim, a mesma ferramenta que os nazistas usavam para converter quem ainda não acreditava em suas balelas.
Em resumo, o nazismo não era só o vilão perfeito — sempre ruim, maldoso, comedor-de-cachorrinhos — mas também a alavanca ideal para pensamentos nacionalistas.
E, enquanto por um tempão o ódio de hollywood foi apontado para a União Soviética ou para o oriente médio, o nazismo nunca fica velho — um filme anti-Al-Qaeda hoje pode não ser tão cativante quanto chutar bolas de nazistas.
E se a gente tirar a suástica?
Antes mesmo do Thanos estralar os dedos, um dos grandes vilões dos quadrinhos Marvel foram os nazistas — e não só na Era de Ouro, em que eles desfilavam por aí com seus símbolos mais conhecidos.
Se você viu qualquer filme moderno da Marvel, vai lembrar de uma organização muito curiosa — seus vilões são bem maldosos mesmo, com roupas pretas de estilo militar, e uma palavra-chave bem característica: Hail Hydra.
Nazistas? Não, claro que não. A Wikipedia mesmo diz que Hydra é “uma organização terrorista ficcional.” Eles só tem uma estética bem característica, um símbolo bem interessante, um bordão bem fácil de decorar, e um ex-líder que era… bem, um nazista.
Quero ressaltar como a suástica já não precisa mais aparecer para que a gente entenda quem são os vilões. Se aparece alguém com a estética — sim, a estética nazista — a gente já crava: esses aí são os coisa-ruim.
E aqui vem a inspiração desse artigo
Pensei em escrever sobre isso quando comecei a reconhecer os tais símbolos nazistas — no sentido semiótico, não literal — em vários vilões da cultura pop e como esses signos se repetem.
Eu busquei exemplos com várias pessoas e cheguei numa lista que eu não consigo confirmar 100% se tudo o que está nela de fato cabe — por exemplo, eu nunca vi Evangelion.
A pergunta foi: “existem jogos, filmes, ou séries, que os vilões são nazistas só que não? Tipo, tem tudo do nazismo exceto a suástica?” As respostas foram:
Fallout
Star Wars
Hunger Games
Snowpiercer
Handmaiden’s Tale
Dishonored
V for Vendetta
Avatar - Fire Nation, mas principalmente Kuvira
Harry Potter
Tropas estelares
O Grande Ditador (do Chaplin)
Marvel (Hydra)
Jogador Nº 1
Elysium
Judge Dredd
Evangelion
Akira
Planeta dos Macacos
Metropolis
Entendo que muitos nessa lista são um stretch, tipo V for Vendetta — que é mais uma crítica à Tatcher — e O Grande Ditador, que é uma sátira bem literal do nazismo, mas estou disposto a mostrar alguns desses exemplos aqui.
Nossos nazistas favoritos
O melhor exemplo desse tipo de inserção é o queridinho do nerdola: Star Wars. A galera adora um Stormtrooper mesmo sabendo (agora sabem!!!) que a tradução do termo em alemão é Sturmabteilung, o exato nome da divisão de paraquedistas nazista. Alou???
Fallout e o Enclave
O novo governo norteamericano de Fallout, o Enclave, tem bastante estética nazista. Os soldados quase-stormtroopers e a ideologia de ter uma raça humana pura — com o total extermínio dos mutantes — diz muito.
Hunger Games
Sim, veio de um livro, eu sei. Mas o simbolismo já tava nele e só foi acentuado nos filmes. Todo o revival dos gladiadores, o pão-e-circo, as exibições grandiosas com bigas… é uma retomada bem grande do ideal estético Romano.
Bem, vocês sabem que o nazismo rouba bonito esse ideal estético, né? O “heil” de “heil Hitler” é o “ave” de “ave César”. A coisa de chamarem Hitler de Führer vem também da ideia do imperador ter um título — César.
Handmaiden’s Tale
Ao invés de apenas termos o nacionalismo e o fascismo, vamos adicionar o terror religioso. Eu só vi a primeira temporada da série, mas quem leu o livro me diz que Gilead é uma analogia forte ao Reich.
Starship Troopers
Por mais que o filme seja uma sátira ao hipermilitarismo do livro original (e dos EUA, vejam só), a estética dos oficiais lembra bem os uniformes nazistas.
Mas e o fascismo?
Muitos dos exemplos citados acima são só fascistas, e não necessariamente mantém o ideal estético do nazismo. Mas, fico a pensar se os dois termos não viraram sinônimos em muitos círculos.
Se nazismo e fascismo são lidos como se fossem a mesma coisa, estamos em perigo. Afinal, se um líder quiser subir ao poder parecendo um general Alemão dos anos 30, vamos saber que não podemos colocar essa pessoa no poder.
Agora, se um político tiver todas as ideias, práticas, e planos fascistas… mas não tiver a estética…
… ele pode muito virar um presidente.
A apropriação imagética fascista
A suástica é um símbolo budista, apropriado pelo nazismo como principal ícone. Outros signos — símbolos pagãos, romanos, cristãos, e heráldicos, além de runas e cruzes celtas — já tem significado roubado e, hoje, são símbolos neonazistas.
Músicas e filmes são apropriados como se fossem parte de um grande ideal fascista — toda vez que vejo uma lista dos chamados filmes incels e percebo que são um monte de filmes que eu adoro, ao invés de pensar “seria eu um deles?” eu penso “parem de roubar os filmes de todos nós”. O movimento incel é bastante fascista.
Aparências enganam
É nessa toada que a gente é enganado e tirado de trouxa.
A gente sabe, de longe, reconhecer um nazista. Sabe que eles vestem as calças abaloadas, botas de cano alto, quepes pretos com seus símbolos bem aparentes. A gente sabe que eles são sóbrios e duros, que a arquitetura é cheia de concreto e dimensões exageradas, que se orgulham de seus símbolos e sinais.
A gente reconhece, por exemplo, que um soldado Russo fotografado fazendo o sinal de “Heil”, com a mão estendida, não está apontando e perguntando “aquele salgado é do quê?”. Sabemos que um soldado ucraniano fotografado com uma bandeira Wolfsangel não tá usando o símbolo pois só o achou bonito.
Todo mundo saca de longe como o vilão se parece — repito, fomos alimentados com a imagem nazista em grande parte da cultura pop. Com esses símbolos, a chance deles chegarem ao poder é mínima — a política internacional vai barrar e falar “calma aí, calabresos”.
Mas e se a gente não usar uma suástica?
Os vilões não são mais os nazistas. Hoje a imagem deles se aproxima mais de personagens de um jogo de tirinho, vilões de ficção científica, ou até os perfeitos antagonistas do nosso espião favorito.
Os vilões são aqueles que se aproveitam de não parecerem nazistas para tomarem o poder e fazerem tudo o que os nazistas queriam — sem necessariamente portar o símbolos amplamente reconhecíveis.
Com o imaginário nazista em voga, a gente não vai chamar a política que pratica extrema violência contra pessoas pretas e periféricas de nazistas — eles não tem uma suástica. Os políticos que pregam segregação e morte — porém sem câmaras de gás, só através de fome e ostracismo social — não são nazistas. Aqueles que acreditam que um ideal cristão é superior — e que todas as outras religiões devem ser extintas — não são nazistas — ainda mais pois vestem verde e amarelo.
Não quero apontar o dedo e falar que a política corporativista e neoliberal que vivemos hoje é quase-fascista… mas meio que quero? Minha intenção com esse artigo é mostrar que essa saturação simbólica é uma grande armadilha e que acabamos perdendo a sensibilidade de quem é vilão de cinema e quem tá praticando as políticas nazistas.
Ao ver o nazismo como caricato e como esse personagem vilanesco e monstruoso, esquecemos que há uma série de áreas cinzas totalmente factíveis na política atual que se assemelham bastante aos ideias nazistas. Não é um bingo, não precisa preencher todas as casinhas para passar no teste.
É importante sabermos que quem tá aí no poder, agora, já tá praticando nazifascismo em pílulas — com o agro, com o controle corporativista da economia, com a extrema desigualdade social, com o genocídio Palestino.
O nazismo não é mais o vilão da vida real. Quem são os novos vilões, então?
Rapidinhas
Um agradecimento
Galera que comentou na última newsletter e/ou respondeu ao email: muito, mas MUITO obrigado.
Os comentários me deram um gás e a crise deu uma passada. Foi com esse up que eu consegui energia para concluir esse artigo. Obrigado demais!
Se vocês quiserem continuar comentando e recomendando pras pessoas, eu vou continuar agradecendo. Porém, só o façam se o coração mandar. Eu nunca mando, só peço encarecidamente <3.
Dinotopia
A próxima edição dessa newsletter será dedicada aos livros da série Dinotopia, brilhantemente ilustradas por James Gurney. Li três dos quatro livros ilustrados, ouvi um audiodrama, e talvez consiga ver a minissérie até a data de publicação. Oremos.
Cybepunk 2077
Planejei falar sobre a experiência cross-media de Cyberpunk 2077 — jogo, HQs e anime — até descobrir que faltava eu ler uma penca de quadrinhos e até um livro no universo. De duas, uma: ou vem aí uma edição falando sobre como esse jogo renasceu das cinzas e trouxe muitas obras de qualidade agarradinhas nele… ou como eu falhei em ir atrás desse material todo. Oremos².
Mad Ship
Comecei a ler o segundo livro da série Liveship Traders. São 656 páginas. Já to arrependido. Vamos ver se ele me pega tanto quanto o primeiro (que me arregaçou de tão legal) e se eu consigo terminá-lo sem ir para algo mais curto antes.
Obrigada demais por esse texto. Era o que eu queria ler e não sabia.
Essa sua visão da perda de sensibilidade por conta da saturação simbólica foi incrível. Foi uma ótima leitura.
oi Angelo, amei o texto. Chegando na sua News por conta dele, aliás. Uma coisa que percebo que os EUA fez muito bem e acredito que tenha sido com base em alguma reunião Casa Branca x Hollywood é que a ideia de fazer EUA sempre herói nos filmes sobre o holocausto, fez com que a população mediana, que não lê notícias sérias e só se informa e acredita no q sai na fox news, no WhatsApp e nos filmes pique Sniper Americano, acredite sempre q os EUA estão do lado certo em uma guerra, que os vietnamitas eram cruéis, que Japão mereceu as bombas, que todo o oriente médio é vilão, que Ucrânia é coitada, que todo palestino é terrorista (mesmo os de 2 meses de vida)…é uma lavagem cerebral sem fim e com muitos títulos e muito ator aceitando fazer…