Educação para aprender — e não para trabalhar
Uma reflexão sobre educação utilitária e o aprender como fonte de prazer
Nesta edição de Cronofobia:
Educação para aprender — e não para trabalhar
Não vou falar do Neil Gaiman
Educação para aprender — e não para trabalhar
Uma de minhas newsletteiras favoritas escreveu essa pedrada há uns 2 ou 3 meses e eu fiquei com o texto dela na cabeça — a
sempre lança umas boas, mas essa aqui pegou muito bem comigo. Se quiser contexto, leia o texto dela — mas volte aqui hein!!!!Vanessa diz:
Há muito tempo as escolas são tratadas como um meio de preparar jovens humanos para o mercado de trabalho. Eu poderia dizer algo meio dramático como “já não formamos mais pessoas, mas sim trabalhadores”, mas a verdade é que sempre foi assim para a classe trabalhadora.
Mesmo aqui na Suécia, lugar em que a alfabetização da população geral é estimulada desde o século 17, a educação do proletariado também seguiu historicamente a lógica de ensinar até onde convém a função profissional do indivíduo. A partir dali, não é necessário educar-se mais. É um problema que atravessa fronteiras.
Eu já estava pensando nisso há um tempo — boa parte desse artigo já foi escrita no meu caderninho antes mesmo da Vanessa publicar o texto dela — e quero expandir nesse tema: a educação não deveria ser apenas utilitária.
Qual é a dificuldade das pessoas entenderem que eu simplesmente posso querer aprender algo novo só pelo prazer de aprender?
Mas você vai parar de programar?
Se tudo der certo esse post chegará até você no dia 1º de fevereiro1, o que significa que em breve estarei iniciando meu segundo semestre na faculdade de psicologia.
Quando me inscrevi para o vestibular, em 2009, coloquei jornalismo como primeira opção e psicologia como segunda. Nunca me arrependi de ter feito jornalismo, mas sempre olhei para trás com um sentimento de “e se?” Agora, em um momento da minha vida em que moro perto de uma universidade, tenho o tempo e a grana, resolvi ir atrás dessa conquista.
Eu imaginava que a galera iria ficar surpresa quando eu, no auge dos meus 34 anos2, começasse um curso de fucking cinco anos. O que eu não imaginava era a quantidade de gente que não entenderia a razão de eu ter começado uma nova faculdade.
O que eu mais ouvi, de longe, foi “mas você vai parar de programar?” ou variações, como “depois cê vai mudar de área” ou até “já tá de saco cheio de codar, né?” Pior que esses só aqueles que já pulam a relação educação-trabalho e miram na educação-dinheiro: “mas você ganha bem com a programação, fazer faculdade pra quê?”
Aprender depois de velho
Vivo tutorando meus dois irmãos adolescentes, e observar a relação deles com a escola me lembra da minha (ou nossa?). É absurdo conversar com eles horas depois que a aula acaba e perceber que eles já esqueceram de tudo o que foi dito na sala. Nada é interessante, nada é divertido, só há movimento se o assunto for a prova de amanhã. De resto? Bobeira.
É muito difícil, como tutor, não insistir que eles aprendam toda a história da independência dos Estados Unidos da América — já que esse lixo pode cair no vestibular. No fim, a escola serve apenas para formar o aluno pro Enem, e daí pra frente ele que se vire. Eu, querendo formar adultos que gostem de aprender, me pego sempre nessa armadilha de forçá-los a aprender coisas que, na minha opinião, tem menos relevância do que a história recente do nosso próprio país.3
Em minha faculdade, um de meus professores repetiu (ad infinitum & ad nauseam) que a escola não prepara um aluno para a universidade, e que a educação brasileira é um lixo. Amigo, mas é exatamente essa a função da escola — preparar o aluno para a próxima parte da vida. E a próxima parte não é nem a faculdade em si, mas a tal da prova geral.
Até aí, a faculdade também é utilitária. Sua função não é o crescimento do conhecimento, mas a produção de trabalhadores em quatro ou cinco anos. Ah, mas você quer um profissional especializado? Aí precisa fazer uma pós lato sensu se quiser trabalhar na área, ou strictu sensu se quiser ser professor (e usuário de remédios psiquiátricos).
É claro que existe, no meio dessa educação utilitária, muita lição que formará um ser humano funcional. Somos forçados a aprender a ler e a escrever pois isso não só nos será útil como trabalhadores, mas como pessoas. Somos forçados a aprender o que é vermelho e o que é verde pois isso nos será útil na vida, não só na labuta. Somos forçados a interagir com grupos, a participar de atividades com quem pensa diferente. Somos forçados a colocar a pecinha redonda na entrada redonda. Mesmo assim, podemos concluir (segundo o instituto MR) que a grande maioria da educação adolescente-adulta serve apenas a função profissional.
Creio que uma lição clara ensinada por muitas faculdades é que, depois que o diploma for entregue, a educação não é mais necessária — exceto se for para a especialização na própria área profissional. Para quê aprender eletrônica se você for advogado? Por quê entender italiano se sua função só trata com clientes brasileiros?
Educação como hobby
Comecei a fazer aulas de teclado, aos 13 anos de idade, sob ordens do meu pai. Ele tinha um plano: seus filhos teriam educação musical (pois ele, guitarrista, adorava música) e eles também começariam a servir ao Senhor assim que possível. A música não era diversão, era um trampo. Poucos meses depois das primeiras aulas já estávamos tocando em todos os cultos da nossa pequena igreja, preenchendo o espaço vago por músicos inexistentes.
Corta para: eu aprendendo acordeon — instrumento que comprei no mais puro impulso — só porque queria aprender. Não tinha banda nem plano de tocar forró por aí. Só queria entender como aquelas porras daqueles botões da mão esquerda funcionavam.
É óbvio que eu ter sido (de certo modo) forçado a aprender teclado me fez ter mais sucesso ao aprender esse instrumento novo no mais puro “foda-se, achei legal e aprendi, fi-lo porque qui-lo”. Mas, de qualquer jeito, o impulso emocional de aprender algo novo é totalmente diferente do movimento mental feito quando vamos usar algo pra ganhar dinheiro.
Comecei a aprender HTML, CSS e Javascript pois vi que meus colegas de trabalho desenhavam lindas páginas de jornal — quando trabalhávamos na Folha de S.Paulo — mas eram burrinhos, cérebro lisinho, na hora de colocar na internet. Eu com certeza conseguiria fazer melhor e de um jeito mais eficiente. Programação nunca foi divertido, e sim meios para um fim.
Mesmo sabendo que esse aprendizado utilitário me trouxe experiências incríveis — porra, eu morei fora do país por 2 anos por causa do Javascript — ele ainda foi 100% utilitário. Aprendi a me divertir programando? Sim, demais. Mas ainda assim, só aprendi o que aprendi por uma necessidade financeira e mercadológica.
Há uns meses, fiz um curso de Max, uma linguagem de programação visual focada em áudio & vídeo. Comprei as aulas do grande artista Matheus Leston e me diverti demais criando umas doideiras visuais e (teoricamente) musicais.
Eu talvez nunca mais vá usar Max na minha vida. Mesmo assim, foi muito, mas muito divertido, poder aprender como essas coisas funcionam under the hood.
Me senti estranhaço quando, durante o curso, percebi que não iria usar aquele conhecimento pra nada prático. É possível que a vida me surpreenda e que eu, de repente, crie algo com Max? Sim, mas definitivamente o curso não foi feito nem pra me aprimorar profissionalmente, nem pra me trazer benefícios financeiros. E isso me trouxe um sentimento bizarro de “mano, por qual razão eu to perdendo meu tempo com isso?”
Toda a cultura da educação utilitária me contaminou, é claro. Afinal, estou provavelmente vivendo na mesma sociedade que você.
Se eu já achava sintomático o aprendizado utilitário, a diversão utilitária me tira do sério e me faz arrancar os cabelos.
Comecei a ler sobre sexualidade, pornografia e história do sexo, mas só quando encontrei uma razão — tanto o curso de psicologia quanto um projeto maluco que vem aí. Até poder ter essas “desculpas”, não havia entrado no assunto. Já li vários livros sobre gestão, mas parei de lê-los quando me vi estagnado no trabalho. Agora que estou num cargo de gerência, tenho vontade de voltar a consumir esse conteúdo.
Recentemente comecei um curso da linguagem de programação Python, e tenho uma lista de coisas que quero fazer com esse conhecimento. Faço isso para incentivar a conclusão desse curso, já que sei que vai ser rapidíssimo para outro curso ou aprendizado “mais importante” tomar o tempo que separei pro Python.
Tá todo mundo ferrado
Toda vez que alguém me pergunta “como fazer amigos depois dos 30”, eu digo: comece uma atividade que nada tem a ver com fazer amigos. Entre no curso de crochê, frequente aquele cineclube, organize uma oficina de poesia, participe de uma suruba. Você pode fazer amizades e, de brinde, aprender algo novo… já que aprender por si só nem vale tanto assim.
Descobri que tem um pessoal começando a correr não pelo exercício físico, mas porque uma galera solteira tá usando grupos de corrida como Tinder offline. Corrida pela corrida? Que isso, eu quero é te abraçar pingando de suor e beijar sua boca toda salgada.
Cada dia anda mais difícil aprender pelo prazer de aprender. Precisamos de desculpas, justificativas, possíveis flertes ou recompensas instantâneas para que a educação valha a pena. É tão fora do normal assim fazer um curso, um workshop, uma oficina, só pelo prazer de agitar o cérebro com novos conhecimentos?
O aprendizado é mais do que a aquisição de capacidade para pensar; é a aquisição de muitas capacidades especializadas para pensar sobre várias coisas — Vygotsky; A formação social da mente, pág 110
Se divertir trabalhando
Há um outro comportamento atrelado ao “não dá pra aprender só por aprender” — o famoso “diversão e/ou trabalho”. Há um tempo comecei a ler um livro pra poder escrever sobre ele, até eu perceber que eu nem queria lê-lo no fim das contas. Mas, como era pra gerar conteúdo, tudo bem, afinal, o trabalho precede a diversão.
Quantas vezes não me peguei assistindo uma série e fazendo anotações para poder transformar aquela atividade em texto? Não há problema quando essa atividade é premeditada — eu vi o anime de Cyberpunk 2077 só pra escrever um artigo e, vejam só, adorei o desenho e ainda não escrevi nada. O problema é quando isso invade nossa vida e a gente precisa colocar esse livro na frente do outro, já que esse dá mais material. O filme que a gente quer reassistir perde para aquele no hype, já que o atual pode virar vídeo, stories, reels, e ninguém quer saber dos velhos.
Primeiro, a galera quer saber sim.
Segundo, foda-se a galera. Foda-se grandão.
Tarja Branca
De novo eu citando o documentário Tarja Branca, agora com ele completinho no Youtube pra você se desfrutar:
Quando a gente é criança, todo o nosso aprendizado acompanha a diversão. Jogamos amarelinha e aprendemos a contar. Queimada nos traz coordenação motora, e eu particularmente entrei em um dilema: caranguejo não é peixe ou caranguejo peixe é? Aprendemos sobre cores enquanto pintamos, e cantamos o alfabeto com todo pulmão— letra por letra.
A vida adulta tira tudo isso da gente — e tudo fica sério. Trabalhar tem que ser sério, se relacionar também. Sexo é sério e não pode dar risada. Aprender? Adivinha?
Se eu já achava sintomático o aprendizado utilitário, a diversão utilitária me tira do sério e me faz arrancar os cabelos. Vá lá, se inscreva naquele curso de xilogravura que você sempre quis fazer. Aprenda a cuidar de samambaias. Solde placas eletrônicas. Leia sobre biohacking, doenças tropicais, correr descalço, canibalismo. Se você tiver curiosidade, leia livro de coach. Foda-se o que a galera vai falar — no máximo você vai ter uma vergoinha, mas até aí você foi lá e fez, e eles que não fizeram nada?
Vamos reaprender a aprender — sem compromisso nem resultado. Vamos relembrar como aprender é divertido.
Rapidinhas
Escrever é divertido
Eu sei, já falei do meu livro aqui mil vezes, mas não custa repetir: PUBLIQUEI UM LIVRO.
Se você já sabia e já comprou, deixe lá 5 estrelas na Amazon? E no Goodreads?
Se você já sabia e não comprou, hora de corrigir isso. E de deixar 5 estrelas no Goodreads.
Se você não sabia, é só clicar abaixo.
Não vou falar de Neil Gaiman
Essa rapidinha já foi um texto de 2000 palavras que, com no segundo rascunho, tinha 1200, e no terceiro, virou essa notinha.
Não vou falar do Neil Gaiman, mas a
e a falaram. Com opiniões diferentes e ângulos diferentes. Vale a pena ler e tirar suas próprias conclusões. A minha opinião não importa. Que se foda o Neil Gaiman.Se isso consolar alguém: o autor Robert Rankin postou isso sobre Terry Pratchet — vulgo meu autor favorito — e Gaiman (tradução minha): “Terry me disse que gostaria de nunca ter trabalhado com ele, mas nunca descobri o porquê.” Sim, talvez Terry soubesse e nunca disse, talvez ele só suspeitava, talvez talvez talvez…
Dia 5 é meu aniversário, o que acha de assinar essa newsletter como um presente? Ou talvez me enviar um pix? Ou um nude? O que vier eu agradeço 😅
Quase 35!!! Leia a nota 1!!!
Tá, eu sei que uma galera formata a educação para a melhor formação dos alunos, mas ultimamente temos visto uma bela sucateada nesse conceito — vide novo ensino médito e etc. Continuo achando muita coisa irrelevante e desinteressante.
Tu acha que 35 anos é ser velho!? TRINTA E CINCO? Sério?
Não é possível.
Entrei na faculdade com 41 anos. Tinha a idade dos pais dos meus colegas.
Tirando o etarismo pesado no começo (que era Zero problema pra mim, eu achava graça) foi bem legal estudar de novo. Ainda mais no melhor curso de Biblioteconomia do país e de graça. Baita privilégio.
Por fim é muita coisa para comentar, mas.. Ah, Angelo, vou te dar parabéns pelo livro (já li alguns livros da Plutão) uma hora vou ler o teu. Abs!
eu amo a sua escrita e toda edição eu penso: caraio como meu amigo é inteligente setaloko
e achei chiquérrimo você citar vygotsky aqui
concordo com tudo e reforço que aprender pelo bel prazer do gostinho pessoal é incrível
amo cada curso "aleatório" que já fiz e espero fazer muitos outros pois gostoso demais
(ps: já acho top te chamar de colega de profissão)