É preciso cultivar o nosso jardim
Sátira, Voltaire, e Cândido, ou o Otimismo — ou: será possível unir filosofia com humor?
Nesta edição de Cronofobia:
É preciso cultivar o nosso jardim
Você é Ruim o Bastante para Salvar São Paulo?
Todas as citações vêm da edição de 2015 de “Cândido, ou o Otimismo”, de Voltaire, publicado na versão Kindle pela Companhia das Letras.
É preciso cultivar o nosso jardim
Meu gênero literário favorito é a sátira. Da Wikipedia (em inglês; não gostei da versão em português; tradução minha):
A sátira é um gênero das artes visuais, literárias e cênicas, geralmente na forma de ficção e, menos frequentemente, não-ficção, em que vícios, loucuras, abusos e deficiências são ridicularizados, muitas vezes com a intenção de expor ou envergonhar — para fins de melhoria — as falhas percebidas de indivíduos, corporações, governo ou a própria sociedade. Embora a sátira seja geralmente humorística, seu objetivo maior é geralmente a crítica social construtiva, usando a sagacidade para chamar a atenção para questões específicas e mais amplas da sociedade.
Essa ideia de tirar sarro desse jeito malemolente, sagaz, e cheio de marra, me deixa boquiaberto. Não lembro minha primeira experiência com sátiras — talvez nos quadrinhos do Maurício de Souza, que criticavam a sociedade de jeito sutil e com bastante ironia. Tá aí um tema bom pra um TCC de quem cursa Letras: “A sátira em A Turma da Mônica”.
O Guia do Mochileiro das Galáxias é um exemplo perfeito de livro que tira sarro de vários temas, principalmente da própria ficção científica. O livro de 1979 já fazia chiste com um montão de clichês que só seriam repetidos com os anos: tecnologias impossíveis, explicações mambembes, inúmeros deus ex machina, e a tecnologia como solução de tudo, com a resposta final do que é a vida, o universo, e tudo mais — a sátira em sua melhor forma.
Alguns anos depois, Sir Terrence David John Pratchett, vulgo Terry Pratchett, vulgo meu escritor favorito, publicou A Cor da Magia (1983) — e só parou de fazer chacota com toda a verve medieval-fantástica de Senhor dos Anéis 40 livros depois, com seu último livro publicado, depois de sua morte. Suas histórias fizeram graça com: contos de fadas, vampiros, fundamentalismo religioso, negócios & política, opera, música, cinema, esportes, e muitos outros.
Pratchett fez piada até mesmo com os famosos mapas dos livros fantásticos. Em uma carta após publicar seu primeiro livro, ele diz que “não há mapas [para Discworld]. Você não pode mapear um senso de humor.”
Segundo a revista Wired (tradução minha):
Anos depois, mapas das cidades do Discworld seriam lançados, mas isso nem vinha ao caso: o projeto de Pratchett era zombar de todas as convenções de fantasia, desde sua elaborada construção de mundo e sistemas de magia até as missões épicas de seus personagens coloridos. Enquanto Tolkien queria que sua Terra-Média fosse tão detalhada e consistente quanto qualquer lugar real, Pratchett não se importava se Discworld não fazia sentido algum. Era uma terra de impossibilidades e absurdos - magos que não podiam fazer magia, dragões desaparecidos, tartarugas do tamanho de planetas.
Eu gosto tanto de sátira que publiquei, por 28 edições, um jornal satírico de ficção científica, o Tempos Fantásticos. Em uma última empreitada, transformei o conteúdo em livro digital, e você pode comprá-lo aqui. Se já o fez, obrigado! Deixe 5 estrelas lá — por favor, nunca pedi nada. Se ainda não comprou, comente no fim do texto como posso te convencer.
Neste texto não vou falar de Douglas Adams, nem de Terry Pratchett, nem de Maurício de Souza, nem do Tempos Fantásticos.
Nesse texto eu falo de uma obra de um dos mais famosos escritores do iluminismo, o abertamente crítico à igreja católica e à escravidão, o infelizmente liberal, o homem batizado como François-Marie Arouet, mas conhecido pelos trutas mais chegados com um único nome: Voltaire.
Ele provava admiravelmente que não há efeito sem causa, e que, no melhor dos mundos possíveis, o castelo do senhor barão era o mais belo dos castelos e a senhora, a melhor das baronesas possíveis. “Está demonstrado”, dizia ele, “que as coisas não podem ser de outro jeito: pois tudo sendo feito para um fim, tudo é necessariamente para o melhor fim. Notem que os narizes foram feitos para carregar óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para usar calças, e nós temos calças. As pedras foram formadas para ser talhadas e para fazer castelos; assim meu senhor tem um belíssimo castelo; o maior barão da província deve ser o mais bem alojado; e os porcos sendo feitos para serem comidos, comemos porcos durante o ano todo; por conseguinte, aqueles que afirmaram que tudo está bem disseram uma bobagem; era preciso dizer que tudo está o melhor.” — p. 33
Véio chato pica
Voltaire morreu com 83 anos, em 1778, o que já é muito hoje, imagina naquela época sem penicilina. O rapaz fez coisa pra caramba — peças de teatro, poemas, romances, ensaios, e ciência.
No alto dos seus 65 anos (1759) ele vestiu a roupa que todo idoso veste — a de falar bosta sem medo de ser escurraçado depois — e escreveu, em TRÊS dias, as cento e poucas páginas de “Cândido, ou o Otimismo” — de agora em diante referido só como Cândido, sem aspas e sem o resto — afinal, o termo “otimismo” só aparece duas vezes no livro e não sou eu quem vai trazê-lo à tona aqui.
Voltaire não tem medo de spoilers — e eu não vou ter aqui também, vem comigo que vale a pena. Todos os nomes de capítulos dizem exatamente o que vai acontecer em poucas palavras. O primeiro de todos, “Como Cândido foi criado num lindo castelo, e como foi expulso dele” (p. 33) já te dá a letra do que vai acontecer. A história continua e Cândido se perde de um parceiro, mas assim que certo capítulo começa você já pode ficar aliviado, sabendo que é ali que ele vai reencontrá-lo. O título é “Como Cândido encontrou o seu antigo mestre de filosofia, o dr. Pangloss, e o que disso adveio” (p. 40).
O livro foi publicado originalmente com o título “Cândido, ou o Otimismo; Tradução do Alemão do Senhor Doutor Ralph”. Como o conteúdo era, digamos, inflamável, Voltaire preferiu usar um pseudônimo — o tal sr. dr. Ralph. Ele só divulgou a autoria em 1768, quase uma década depois que o livro deu muito o que falar. Imagino Voltaire nas festas, ouvindo a galera fofocando sobre o livro, e ele mandando um “nossa, nem li esse, é bom?”
Significante e significado
Em Cândido, Voltaire dá uma de Dante e faz referência à um monte de afetos e desafetos, criticando abertamente a galera que estava famosa na época, dando-os nomes fictícios — que só os sabidos entendiam. Há, por exemplo, um senador chamado Pococuranté, cujo nome, segundo as notas da minha edição, significa “alguém que não dá a mínima”. O senador é um chato de galochas que acha tudo entediante — e tem um comportamento parecido com políticos e aristocratas da época dele (e da minha).
Pococuranté, enquanto esperavam o jantar, mandou que lhe dessem um concerto. Cândido achou a música deliciosa. “Esse barulho”, disse Pococuranté, “pode agradar durante meia hora; mas, se durar mais do que isso, cansa toda gente, embora ninguém ouse confessá-lo. A música hoje não passa da arte de executar coisas difíceis, e aquilo que é somente difícil não agrada ao longo do tempo. […]” — p. 116
O maior criticado do livro é o filósofo Leibniz. O nome dele ali tá com um link pra Wikipedia pois tem coisa demais pra falar dele e o texto já tá enorme. O que importa é que:
Em filosofia, Leibniz é mais conhecido por seu otimismo, por sua conclusão de que nosso universo é, num sentido restrito, o melhor de todos os mundos possíveis que Deus poderia ter criado. […] Leibniz, juntamente com René Descartes e Baruch Spinoza, foi um dos três grandes defensores do racionalismo no século XVII.
Não há um personagem que seja exatamente Leibniz, mas toda a premissa filosófica do livro é uma piada com sua linha de pensamento.
Porque tudo isto é o que há de melhor. Pois, se há um vulcão em Lisboa, ele não podia estar noutro lugar. Porque é impossível que as coisas não estejam onde estão. Pois tudo está bem. — p. 46
Jogo de palavras
Voltaire faz troça com pessoas, lugares, e linguagens. Há no livro uma cidade chamada Valdberghoff-trarbk-dikdorff (p. 35) — uma piada com o idioma alemão. O termo significa algo como Floresta Montanha Fazenda Vila (e mais umas palavras sem sentido). Ai ai esses alemães… Aliás, Cândido mesmo é alemão, da região de Westfalen — em português Westfália, que também é o nome de uma cidade no Rio Grande do Sul. Ai ai esses alemães…
Cândido é um rapazote que mora nesse castelo — não é um nobre — e que é estudante do dr. Pangloss, um filósofo. Segundo Cândido, o dito doutor “ensinava a metafísico-teológico-cosmolonigologia”. Rá, viram o que ele fez ali? Para o desavisado (e leitor-dinâmico), a palavra cosmolonigologia pode parecer-se com cosmologia ou cosmogonia… mas esse nigologia na verdade significa “bobão” (p. 139). É o ensino da bobeira.
Mesmo ele mesmo sendo um filósofo, Voltaire zoava com a própria classe sem pestanejar. Em várias partes da história os filósofos e pensadores — principalmente os do clero — são burros e covardes.
Cândido, que tremia como um filósofo, escondeu-se o melhor que pôde durante aquela carnificina heroica. — p. 38
Tudo em todo o lugar ao mesmo tempo
Acontece muita coisa em Cândido, e a maioria é tragédia, e grande parte acontece por conta de uma paixão. Cândido quer dar uns pegas na nobre Cunegunda — que força nominal, hein — e sua incessante busca em ficar com a amada o leva para uma jornada tão dolorosa quanto pedagógica — sempre rodeando a máxima Panglossiana de que tudo sempre é o melhor possível.
Voltaire usa uma técnica divertidíssima: o narrador da história, aparentemente oniciente, não é nada confiável. Ele parece concordar com a tal filosofia de Pangloss.
Em certo momento o rapaz e seu professor são presos, e essa é a narração:
Vieram prender depois do jantar o dr. Pangloss e o seu discípulo Cândido, um por ter falado e o outro por ter escutado com ar de aprovação: ambos foram levados separadamente para cômodos de extremo frescor, nos quais nunca se era incomodado pelo sol — p. 47
Primeiro: “um por ter falado e o outro por ter escutado com ar de aprovação”. Genial, pensa aí. É basicamente o “não tenho provas, mas tenho convicção” do século 17.
Segundo: “ambos foram levados separadamente para cômodos de extremo frescor, nos quais nunca se era incomodado pelo sol” é uma visão bastante otimista de uma cela. Só quem não consegue enxergar o perrengue que traduziria tal situação desse jeito.
Uma personagem — que sofre, mas sofre muito — chega ao absurdo ao refletir sobre como sua vida ativa — mesmo desgraçada — foi melhor que a inação. Afinal, “o homem tinha nascido para viver nas convulsões da inquietude ou na letargia do tédio” (p. 133). A passagem é séria — comparada com o resto do livro — mas mostra como o pensamento dos personagens é raso, mesmo com tanta referência à reflexão e filosofia.
Parece até uma crítica à vida do millenial workaholic.
“Eu gostaria de saber o que é pior, ser violada cem vezes por piratas […], ter uma nádega cortada, passar por açoite de varas na terra dos búlgaros, ser chicoteado e enforcado num auto de fé, ser dissecado, remar nas galeras, experimentar enfim todas as misérias pelas quais todos nós passamos, ou ficar sem fazer nada?”. “É uma boa pergunta”, disse Cândido. Esse discurso fez surgirem novas reflexões, e Martinho principalmente concluiu que o homem tinha nascido para viver nas convulsões da inquietude ou na letargia do tédio. — p. 133
Você não entenderia
Em certo momento Cândido serve em um batalhão do exército, e essa é a versão de Voltaire para o famoso vídeo brasileiro:
Fazem-no virar à direita, à esquerda, levantar a vareta, recolocar a vareta, mirar, atirar, dobrar o passo, e dão-lhe trinta bastonadas; no dia seguinte ele faz o exercício um pouco menos mal, e recebe apenas vinte pancadas; dois dias depois só lhe deram dez, e ele passa a ser visto por seus camaradas como um prodígio. — p. 36
Já deu pra entender o tipo de linguagem que Voltaire usou em seu livro, né? E dá pra entender também como meu humor é um lixinho — eu acho essas paradas hilárias, e muita gente só fica com pontos de interrogação na cabeça.
Quando um dos personagens fica feliz que — apesar deles terem sofrido pra caramba na mão do exército invasor, tá tudo bem porque eles fizeram o mesmo com seus vizinhos inimigos. É uma mesquinhez que se repete até hoje na nossa belíssima sociedade capitalista — e olha que Voltaire certamente seria ancap hoje em dia, viu?
E quanto ao castelo, não ficou pedra sobre pedra, nem uma cocheira, nem um carneiro, nem um pato, nem uma árvore; mas fomos bem vingados, pois os abares fizeram o mesmo num baronato vizinho que pertencia a um senhor búlgaro. — p.41
Uma passagem que eu gosto bastante é aquela em que um monge descreve o horror de ter pego uma doença venérea de Paquette, uma prostituta, para Cândido. Ele diz:
Degustei em seus braços as delícias do paraíso, que produziram estes tormentos infernais pelos quais me vedes devorado. Ela [Paquette] estava infectada. Talvez já tenha morrido disso. Paquette tinha recebido essa dádiva de um franciscano muito sábio, que fora buscar sua fonte; pois ele a pegara de uma velha condessa, que a recebera de um capitão de cavalaria, que a devia a uma marquesa, que a pegara de um pajem, que a recebera de um jesuíta, que, sendo noviço, a havia contraído em linha direta de um dos companheiros de Cristóvão Colombo. Quanto a mim, não a passarei a ninguém, pois estou morrendo”. — p. 42
Ao questionar seus colegas — filósofos e religiosos — perguntando “não foi o diabo que esteve na origem disso?” Cândido recebe a seguinte resposta:
Era uma coisa indispensável no melhor dos mundos, um ingrediente necessário; pois se Colombo não tivesse pegado, numa ilha da América, essa doença que envenena a fonte da geração, que muitas vezes até impede a geração, e que é evidentemente o oposto do grande escopo da natureza, não teríamos nem o chocolate nem a cochonilha. — p. 42
Para os personagens do livro, todos — e absolutamente todos — os males vêm para o bem.
Abaixo o clero
Voltaire prega muitas peças com as crenças religiosas, principalmente as católicas. Ele cita nomes de vertentes — como os franciscanos acima — e brinca com práticas horrendas e ilógicas.
Depois do terremoto que havia destruído três quartos de Lisboa, os sábios do país não tinham encontrado um meio mais eficaz para prevenir uma ruína total senão dar ao povo um belo auto de fé; fora decidido pela universidade de Coimbra que o espetáculo de algumas pessoas queimadas em fogo brando, em grande cerimônia, é um segredo infalível para impedir a terra de tremer. — p. 47
A comparação das práticas católicas — e a aberta crítica à inquisição portuguesa, acontecida entre 1536 e 1821 — é constante. Em certo momento — não me perguntem como, é uma loucura — Cândido se vê no lugar mais cobiçado da América do Sul: a cidade fictícia Eldorado. Ao tentar entender como aquela cidade com literais casas de ouro e prata se sustenta, Cândido descobre que a influência religiosa funciona de modo diferente.
Quê? Não tendes monges que ensinam, que disputam, que governam, que intrigam e que mandam queimar as pessoas que não compartilham as suas opiniões? — p. 83
Assim que Cândido percebe que Eldorado é maravilhosa — em beleza, comida, política, e religião — ele logo se apaixona. Sem pestanejar, sua visão filosófica é abalada e ele deixa para trás boa parte do que vem defendendo durante sua (longa e árdua) jornada.
“Que país é este, pois”, diziam-se um ao outro, “desconhecido por todo o resto da terra, e onde toda a natureza é de uma espécie tão diferente da nossa? É provavelmente um país onde tudo vai bem; pois é absolutamente necessário que haja algum desta espécie. E, apesar do que dizia o mestre Pangloss, muitas vezes me dei conta de que tudo ia bastante mal na Westfália.” — p. 81
Ao se deparar com coisas realmente melhores — e estando longe de seu mentor, que morre e revive umas 3 vezes durante o livro — ele deixa sua crença para trás e a reformula. Porém, ao se ver num lugar infinitamente melhor, tudo se aplaina e o magnífico se torna comum — demonstrando como seu pensamento parece sólido mas é, na verdade, bastante inconstante. O narrador descreve:
Entraram numa casa simplesinha, pois a porta era apenas de prata, e os lambris dos cômodos eram só de ouro, mas trabalhados com tanto gosto que os mais ricos lambris não os apagavam. A antecâmara, na verdade, só era incrustada de rubis e de esmeraldas; mas a ordem em que tudo estava arranjado remediava bem essa extrema simplicidade. — p. 81
Socar pra cima
Voltaire não tinha medo de ser exagerado em sua comédia. Ao apresentar um personagem, o governador de Buenos Aires d. Fernando de Ibaraa y Figueora y Mascarenes y Lampourdos y Souza, o punchline humorístico vem logo ao final da descrição do homem.
Esse senhor tinha um garbo condizente com um homem que trazia tantos nomes. Falava aos homens com o mais nobre desdém, de nariz levantado, erguendo tão impiedosamente a voz, assumindo um tom tão imponente, afetando um andar tão altivo, que todos aqueles que o saudavam eram tentados a bater nele. — p.65
Em outro momento, Voltaire traz novamente a técnica do punchline. Ao descrever como um médico ficou viúvo (e como a culpa é, no caso, da mulher dele), o narrador diz:
Sabeis, meu senhor, quanto é perigoso para uma mulher impertinente ser esposa de um médico. Este, exacerbado com os procedimentos da mulher, deu-lhe um dia, para curá-la de um resfriadinho, um medicamento tão eficaz que ela morreu daí a duas horas, em convulsões horríveis. — p. 112
O autor exagerava em descrições e números, talvez para trazer o leitor de volta à realidade — aquilo não era nada mais que um folhetim, uma brincadeira, um chiste. Quando Cândido parte de Eldorado — já que, para ele, o seu grande amor era mais importante que a melhor cidade do planeta, ele recebe uma quantidade idiota, absurda, e ridícula de riquezas. Nessa hora eu pensei: “como ele vai continuar o livro se ele está podre de rico? Afinal, dinheiro é felicidade, né?” — meu deus do céu o que eu me tornei?
Havia dois grandes carneiros vermelhos selados e com rédeas para lhes servir de montaria quando tivessem ultrapassado as montanhas, vinte carneiros de carga com víveres, trinta que carregavam presentes do que o país possuía de mais curioso, e cinquenta carregados de ouro, pedrarias e diamantes; o rei abraçou ternamente os dois andarilhos. — p. 87
(Ah, os “carneiros vermelhos” eram lhamas. E 48 deles morrem no capítulo posterior. E levam todos os tesouros juntos. Sem massagem.)
[…] ou o Otimismo
A palavra “otimismo” aparece só duas vezes no livro. Em uma delas há uma descrição certeira — talvez um lapso de realidade nesse mundo de cenas ridículas. Ao discutir com um colega, Cândido mesmo solta a braba:
“O que é otimismo?”, dizia Cacambo. “Lamentável!”, disse Cândido, “é a fúria de sustentar que tudo está bem quando se está mal.” — p. 89
Repetindo: “otimismo é a fúria de sustentar que tudo está bem quando se está mal.” Forte né?
Cândido dá uma puta volta — sai da Alemanha, passa na França, em Portugal, na Argentina, no Peru, e na Turquia.
Mesmo depois de ter passado todos os perrengues do mundo, de ter visto quase todos os seus amigos morrerem de formas cruéis, Cândido não perde sua fé na filosofia de Pangloss — que continua sendo seu farol e guia — mas aprende com a vivência que não dá pra acreditar em nada com tanta força assim. Não acredito que haja uma redenção do personagem, mas o parágrafo final mostra que talvez há, agora, uma nova prioridade.
Pensar, entender o encadeamento da vida, refletir sobre os movimentos celestes, decifrar os enigmas da humanidade… tudo isso é importante. Mas, sendo práticos, tem coisas mais importantes na nossa frente — agora mesmo, na sua frente, pessoa leitora — do que chorar pelo leite derramado.
A conclusão do livro é que todo esse pensamento — interno, mental, subjetivo — perde para as urgências práticas da vida. O que é a filosofia quando nos deparamos com os perrengues do dia a dia? É importante pensar, mas carpinar um terreno pode ser, agora, ainda mais importante. É curioso que isso venha logo de um filósofo como Voltaire, e mais divertido ainda como trocentos anos depois eu me pegue lendo essa obra e pensando: caralho, tenho um milhão de coisas pra fazer e to aqui escrevendo textinho de reflexão bla-bla-bla-whiskas-sachê.
Mas, se não fosse Gutenberg, Leibniz, Voltaire, Cândido, a Companhia das Letras, o Kindle, e esse texto, eu não teria chegado nesse lugar que estou na vida, nem nessa conclusão, nem nesse tanto de coisa na minha lista de tarefas.
A vida é — invariavelmente — louca.
“Todos os acontecimentos estão encadeados no melhor dos mundos possíveis; pois, afinal, se não tivésseis sido expulso de um lindo castelo a grandes pontapés no traseiro pelo amor da senhorita Cunegunda, se não tivésseis sido submetido à Inquisição, se não tivésseis percorrido a América a pé, se não tivésseis dado um bom golpe de espada no barão, se não tivésseis perdido todos os vossos carneiros do bom país de Eldorado, não comeríeis aqui cidras recheadas de pistaches”. “Isso está bem falado”, respondeu Cândido, “mas é preciso cultivar o nosso jardim.” — p. 137
Rapidinhas
Você é Ruim o Bastante para Salvar São Paulo?
Silva João é quadrinista, ilustrador, animador, piadista profissional, meu amigo pessoal, e autor dessa tirinha:
Sua última obra é o jogo em texto (programado em Twine*, e eu adoro Twine) “Você é Ruim o Bastante Para Salvar São Paulo”. Sem brincadeira, vale a pena jogar AGORA, ele é com certeza o Anthony Burgess da nova geração.
* Vi uma blucetada dele dizendo que estava portando o jogo pra Decker, veremos.
Por uma ótima coincidência, eu li Cândido faz uns 15 dias.
"A conclusão do livro é que todo esse pensamento — interno, mental, subjetivo — perde para as urgências práticas da vida. O que é a filosofia quando nos deparamos com os perrengues do dia a dia?" Me lembra esse verso do Bon Iver: "A word about Gnosis: It ain't gonna buy the groceries"
(aliás acho q vc vai curtir as referências teológicas https://youtu.be/YJNi7aRwUzU?si=P9qp-SxUt6AbL-f4&t=3640 )
Você me ganhou ali em Voltaire não tinha medo de spoilers...
Já falei que amo seu jeito de contar as coisas? Por favor, não pare.