Não lembro quando conheci Lucia Boldrini. Como fiz trainee na Folha de S.Paulo com a filha dela, Angela, pode ter sido que a gente se trombou e eu nem percebi. Lembro, porém, de quando Lucia (sem saber) mudou minha vida.
Ela morreu dia 14, como diz o obituário escrito pela própria filha — algo fortíssimo, já que eu tentei escrever o obituário do meu pai na época e não consegui. Vale ler.
Sem muita estilística ou narrativa, digo que o tema desse texto é simples: as pessoas mudam as nossas vidas, mesmo se por atitudes de um segundo.

Lucia abria seu apartamento recheado de livros, na República, para qualquer um que quisesse se abrigar dos perigos noturnos do centro de São Paulo durante a Virada Cultural.
Se você soubesse o endereço e o número do apartamento, poderia subir, entrar, e viver um pouco do universo dela. Já disse: não a conheço bem, devo ter trocado um par de frases com ela, e mesmo assim minha vida foi impactada.
Lembro-me bem: ao entrar naquele apartamento, fiquei chocado com os 4.000 livros (segundo Angela) pelas paredes. O lugar, muito movimentado, tinha gente de toda estirpe — inclusive pessoas que ninguém conhecia mas, “se soubesse o endereço” e tal. Lucia oferecia a seus hóspedes o conteúdo de uma panela gigantesca que fervia no fogão: cachorro quente.
O “baldão”, como Angela o chama, alimentava tanto os jovens meio-embriagados (eu) como gente que (no meu olhar) brilhava em uma aura dourada e inalcançável — jornalistões, gente grande, que ficava ali tomando uma cervejinha e rindo da vida. E essa é a cena que está tatuada na minha cabeça (perdão Angela se há inconsistências, a memória prega peças).
Havia, no apartamento, uma sala menor com um aparelho de música. Não sei se era uma vitrola ou algo mais moderno, mas ele estava ali. Dele, saía o som de violinos e violoncelos, e vozes em coro cantando em idiomas que eu não conhecia. Ao redor da máquina, os tais jornalistões davam risadas, bebiam suas doses de uísque e cerveja, e fumavam cigarros, charutos, ou nada — já que a memória, como disse, não é confiável.
A atividade que tirava risadas e os divertia naquela madrugada? Escutar e comentar diversos hinos nacionais.
Eu fiquei ali, vidrado, em como aquelas pessoas (um bando de velho, na minha análise da época) conseguia se reunir, tomar um negocinho, e ficar rindo de uma coisa tão chata como hinos nacionais. O que há pra falar deles? Qual a piada?
E ali, naquele momento, eu me apaixonei.
Quis, a partir daquele dia, viver exatamente isso no meu futuro — me reunir com meus amigos e me divertir com algo tão peculiar — pois a diversão é sobre pessoas, e não coisas. Lucia, sem saber, mudou minha vida.
Olhei bem para aquela cena e disse: é assim que eu quero ser quando crescer.
Estava hoje conversando com Angela sobre um possível encontro de dez (ou onze?) anos da nossa turma de trainees, quando descobri sobre a morte de Lucia. As memórias voltaram com força daquela época, de como tudo era diferente e mais leve. Pré-pandemia, pré-Bolsonaro, parece até aqueles desenhos de testemunhas de Jeová.
Hoje, olhando pros colegas trainees, fico impressionado como a gente viveu a vida. Não quero focar no tradicional “venceu pois se promoveu no trabalho”, mas é legal ver Angela, hoje mãe, se formando na Escola de Londres de Economia e Política e publicando matérias. É massa demais ver Walter Porto ser editor e colunista da seção de literatura da Folha. Ver Giovanni Bello ser videografista na BBC Londres. Ver Fernando Mola, Ione Aguiar, André Kisner, e EU bem longe do jornalismo — o que, na minha opinião, é a decisão mais acertada.
Essa galera, em breve, vai se encontrar. E a gente não vai fazer palestras sobre arquitetura barroca, discutir política internacional, ou divagar sobre o trabalho de Schopenhauer1. A gente vai falar de coisas nichadas, específicas, e peculiares… e cagar de rir de todas elas.
Lucia, eu me tornei quem eu sou — um pouco — por sua causa. Mesmo sem você nunca saber.
Num tom mega coach, eu pergunto: será que você já mudou a vida de alguém e nem sabe?
Eu não costumo ferir meu cronograma quinzenal, mas tem assuntos que valem.
Tá, talvez a gente fale de Schopenhauer, mas é mais pra rir dele, ou às custas dele, do que pra ficar babando ovo
Que lembrança linda 💖
Me deu vontade de ter um lugar como o dela com gente passando por aqui o dia inteiro e o panelão de sopa sempre quente no fogão. Obrigada pela imagem e pelo texto!